Antes de ler esta reportagem, por favor, confira se você já cometeu alguma destas ações:
O combate à corrupção tem aparecido como uma das principais bandeiras nesta novíssima história da República que brasileiros começam a escrever. Se, por um lado, o pedido por honestidade toma as ruas desde a pressão pela aprovação da Lei da Ficha Limpa, em 2010, e, mais intensamente, a partir dos protestos de junho de 2013, por outro, cidadãos ainda encontram dificuldade de vencer seus próprios vícios. É raro verificar alguém que nunca tenha cometido pequenos desvios de conduta no cotidiano, como os listados acima. Esses comportamentos não deslegitimam o grito contra a corrupção e estão longe de ser a origem dos roubos aos cofres do governo, mas também atropelam o interesse público e mostram que o problema vai muito além dos três poderes.
“A corrupção tem dois significados: algo que se quebra e se degrada.
Ela quebra o princípio da confiança, que permite a cada um de nós
associar para poder viver em sociedade. Também degrada o que é público”,
explica a professora do Departamento de História da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) Heloísa Starling uma das organizadoras e
coautoras do livro Corrupção – ensaios e críticas. “Quando você para em
fila dupla, está degradando o sentido do público. Esses desvios de
conduta são uma reiteração desse fenômeno complexo da corrupção”,
completa.
Já que o exemplo são as infrações de trânsito, vale lembrar que, apenas no ano passado, foram emitidas 3.980.707 multas em todo o estado, de acordo com o Departamento de Trânsito de Minas Gerais (Detran-MG). É como se 42% da frota de Minas, estimada em 9,3 milhões de veículos, fosse flagrada em atos fora da lei. “São pequenas corrupções em que o privado se sobrepõe ao público. A corrupção não se dá só na relação com o Estado, mas também com a sociedade”, acrescenta o professor de ética e filosofia política da Universidade de São Paulo (USP), Renato Janine Ribeiro.
Mas o filósofo alerta: “A pequena corrupção não é a causa da grande corrupção. Não é porque a pessoa não aprendeu a ser honesta que ela rouba a Petrobras. É porque é bandida mesmo”. Mas, de pouco em pouco, pequenos desvios de conduta podem representar prejuízos robustos. Por causa de “gatos” na rede elétrica, a Cemig calcula prejuízo de R$ 600 milhões nos últimos dois anos. Estimativa do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz) revela que, de 1º de janeiro até a última quarta-feira, a sonegação fiscal no país atingiu a marca de R$ 105 bilhões.
A circulação em massa de carteirinhas estudantis falsas levou à mudança na legislação relacionada à meia-entrada. Em vez de documentos emitidos pelas instituições de ensino, uma carteira de padrão nacional com segurança física e digital passou a ser exigida desde 2013. “Isso tudo para que o estudante de verdade possa ter esse documento”, informam a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), responsáveis pela emissão.
Fora do cinema e do teatro, as pequenas corrupções também estão dentro de casa. Do total de 22,7 milhões de domicílios com TV por assinatura, 4,2 milhões – o equivalente a 18,4% – têm ligações clandestinas. Os dados são da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura (ABTA), em pesquisa inédita feita em agosto sobre furto de sinal. Segundo o levantamento, possuir TV a cabo clandestina não parece uma contravenção para 38% dos clandestinos, o que torna maior o risco que este comportamento cresça.
A prática disseminada desses desvios de conduta levou a Controladoria-Geral da União a lançar a campanha “Pequenas Corrupções – Diga não”, sucesso na internet, com 10 milhões de usuários alcançados no Facebook. A tentativa é combater atitudes antiéticas ou ilegais, mas culturalmente aceitas. “No Brasil, temos uma democracia sólida do ponto de vista das instituições, mas falta uma cultura mais republicana, que se preocupe com a coisa pública”, destaca Heloísa.
PRAGA DISSEMINADA O professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, Fernando Filgueiras, autor de Corrupção, democracia e legitimidade, defende que há um elemento cultural envolvido na corrupção. “Não que esteja ligado a uma disposição de caráter dos cidadãos. Mas na forma como eles a percebem e agem frente a ela”, afirma. Segundo professor, se a sociedade percebe a corrupção como negativa, logo cria sanções morais contra ela, ao contrário dos casos em que “os custos morais para a corrupção são baixos”.
Furar fila, não declarar compras na alfândega e estacionar em local proibido são, segundo Filgueiras, pequenas formas de corrupção que se proliferam em sociedades onde há maior tolerância em relação ao problema. Para o cientista político, a sociedade brasileira tem mudado significativamente desde o processo de redemocratização, que tem a Constituição Federal de 1988 como um de seus marcos. “As pessoas hoje aderem mais às normas, estão mais convictas da importância da democracia e lutam contra a corrupção”, reforça.
Heloísa Starling destaca que a corrupção não se trata de um mal exclusivo do Brasil, mas vício que ocorre em todos países, democráticos ou não. “A ideia de se associar ao ‘jeitinho brasileiro’ cria justificativa de que o Brasil é corrupto em função da sua identidade”, questiona a historiadora. A literatura, entretanto, não cansou de associar a ideia de burlar as normas com o país. O livro mais célebre é Macunaíma, em que o autor, Mário de Andrade, apresenta um retrato do povo brasileiro a partir da história do índio que dá nome ao romance, um “herói sem caráter”.
Ao longo de sua trajetória, o antropólogo Roberto da Matta se debruçou sobre o “jeitinho brasileiro”. No livro “O que faz o Brasil, Brasil?”, ele mostra que o dilema brasileiro reside num embate entre leis universais e situações onde cada qual se salvava usando de relações pessoais. “E no meio dos dois, a malandragem, o “jeitinho” e o famoso e antipático “sabe com quem está falando?” seriam modos de enfrentar essas contradições e paradoxos de modo tipicamente brasileiro”, escreve.
O filósofo Renato Janine Ribeiro considera que isso se deve ao fato de que a via da lei, por muito tempo, não deu a certeza de que o resultado pretendido seria alcançado. “Isso está diminuindo, é uma mudança que corresponde à democracia e a maior segurança de que a via institucional funcione”.
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