quarta-feira, 19 de março de 2014

A PESSOA HUMANA PODE PERDER O SEU VALOR? A DIGNIDADE HUMANA PODE SER ANIQUILADA?

Padre Edmar José da Silva

       Ao tomar conhecimento do Hino da Campanha da Fraternidade de 2014, composto por Roberto Lima de Souza e selecionado pela CNBB, causou-me estranheza e perplexidade a afirmação contida na terceira estrofe. Colocando em relevo a dramática situação de milhares de pessoas que são vítimas do tráfico humano, o autor afirma: “E quantos chegam a perder a dignidade, sua cidade, a família, o seu valor”. Posteriormente, lendo o texto base, fiquei igualmente assustado com a seguinte afirmação: “o tráfico humano é um crime multifacetado, altamente lucrativo, de baixíssimo custo e de poucos riscos aos traficantes em que a vítima tem a sua dignidade aniquilada, sem ter como enfrentar e lidar com a situação em que foi submetida...” (Texto base, nº 3).  É possível a pessoa humana perder a sua dignidade e o seu valor por ser vítima de uma situação de opressão e exploração? É possível aniquilar (reduzir a nada) a dignidade da pessoa humana? Estou entre os que duvidam disso.
A reflexão que agora apresento não deseja ser uma afronta arrogante ao compositor da canção ou aos autores do texto base da CF 2014. Analisados na sua inteireza, tanto o hino quanto o texto base são preciosos instrumentos para se pensar a questão em pauta: o tráfico humano. Portanto, este artigo é apenas expressão da preocupação e angústia intelectual de um estudioso que acredita que toda antropologia fragmentada ou deturpada pode levar a uma postura ética relativista e a uma eclesiologia desvirtuada.
Como professor de Antropologia Filosófica, tenho feito um percurso árduo e academicamente exigente com os alunos, buscando os fundamentos ontológicos do valor e da dignidade humana, amparado por pensadores da tradição filosófica de cunho personalista. Apesar da complexidade do tema em questão, todo o esforço reflexivo aponta para uma constatação filosófica básica e racionalmente aceitável: a dignidade humana se fundamenta na própria estrutura constitutiva da pessoa humana, é algo inerente à sua própria condição. É em virtude daquilo que diferencia substancialmente a pessoa humana dos demais seres, ou seja, a sua racionalidade, liberdade, interioridade, abertura, consciência, que podemos afirmar que ela possui ontologicamente valor e dignidade. Toda pessoa humana, independentemente do contexto cultural, social, histórico e existencial no qual está inserida, pelo simples fato de ser pessoa humana, já é ser de dignidade e de valor. Assim como não existe mais pessoa ou menos pessoa, também não existe algum ser humano que tenha mais ou menos dignidade. Ser pessoa humana é ter dignidade.
Quando uma pessoa humana é desrespeitada nos seus direitos, explorada, escravizada, injustiçada, desvalorizada ou discriminada, como é o caso da vítima do tráfico humano, isso não significa que perdeu a sua dignidade e o seu valor, na verdade, eles não foram reconhecidos, não foram respeitados, mas ela continua ser de dignidade e de valor. A dignidade humana “não é uma realidade concedida por alguém ou por alguma instituição, seja ela civil ou religiosa. É uma realidade que deve ser reconhecida e respeitada. Pode-se violar, vilipendiar, agredir, atentar contra a dignidade da pessoa humana, mas não roubá-la ou aniquilá-la. Pode-se reconhecê-la e valorizá-la, mas não concedê-la” (SILVA, Edmar José. Provocações éticas. 2ª ed., Mariana: ed. Dom Viçoso, 2014, p. 74).  A pessoa humana possui um valor intrínseco, imanente, que advém da sua própria essência ou natureza. Portanto, ninguém ou nenhuma realidade extrínseca pode roubar ou aniquilar o seu valor e a sua dignidade. Afirmar que uma pessoa perde a dignidade por ser vítima de uma situação social degradante é oferecer munição ideológica para os insensíveis oportunistas que desejam explorá-la ainda mais. É também um perigo, pois pode levar a uma postura objetivante nas relações intersubjetivas.
A reflexão feita até o momento é de cunho filosófico, mas as afirmações contidas no hino e no texto base da CF 2014 merecem também uma consideração na perspectiva teológica.  Na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, na parte I, no capítulo I, no número 12, os padres conciliares evidenciam que a dignidade humana reside no fato do ser humano ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, capaz de conhecer e amar seu criador e estabelecer comunhão fraterna. Portanto, é algo estrutural, dado por Deus, faz parte da condição não somente criatural, mas também filial do ser humano. Também no Catecismo da Igreja Católica, no número 358, encontramos a afirmação: “A dignidade da pessoa humana radica na criação à imagem e semelhança de Deus”. O próprio texto base reconhece que a dignidade humana é uma “qualidade intrínseca e inseparável de todo e qualquer ser humano. Todo indivíduo tem a dignidade de ser pessoa humana somente pelo fato de existir” (Texto-base, nº 228).  A partir destes textos do magistério, podemos afirmar categoricamente que a dignidade e o valor do ser humano são intrínsecos, conaturais à sua condição, foram concedidos por Deus no ato da criação. Portanto, afirmar que uma pessoa humana perde o seu valor e a sua dignidade ou que estas realidades são aniquiladas por causa da exploração a que está submetida, significa afirmar que em virtude de fatores extrínsecos, a pessoa humana deixa de ser criatura especial, perde a sua condição e o seu estatuto ontológico de filho (a) de Deus, o que teologicamente é um absurdo.
No campo jurídico, político e social a reflexão caminha na mesma direção. A Constituição Federal Brasileira (1988), no art. I, inciso III, estabelece que a dignidade é é um dos fundamentos do Estado Democrático de direito e o valor unificador de todos os demais direitos.  Comentando a concepção de dignidade na Constituição brasileira, o doutor em Direito Ingo Wolfgang Sarlet declara: “Temos por dignidade a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado”. Também a ONU, na Declaração dos Direitos Humanos (1948), afirma no artigo I: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (artigo I). Como se percebe, tanto a carta magna que rege a sociedade brasileira, quanto o documento que visa garantir os direitos humanos, reconhecem que a dignidade humana é algo intrínseco, inato e inerente a todo ser humano, portanto, não pode ser relativizado.
Para se falar em valor e dignidade humanos, devemos estar atentos para os princípios que fundamentam a nossa compreensão destas radicais realidades antropológicas. A sociedade atual, ancorada na busca vertiginosa pelo progresso técnico-científico, tende a fundamentar o valor da pessoa humana na sua capacidade produtiva. Quando mais se produz, mais valor a pessoa adquire. Neste sentido, os idosos, doentes, crianças, portadores de deficiência física e mental são considerados pessoas de menos valor, porque não possuem condições de corresponder às expectativas mercantilistas e produtivas do mercado. Existem alguns ainda que tendem a fundamentar a dignidade da pessoa humana a partir da função e da posição social que ela ocupa: quanto mais alta a função e o padrão de vida, mais a pessoa é valorizada e respeitada. Tudo isso é indício de uma concepção empobrecida e deturpada antropologicamente. Por isso, devemos estar atentos na busca de uma fundamentação ontológica e metafísica para o tema da dignidade humana, para não compreendê-lo e tratá-lo ao sabor de fatores sociais, culturais, existenciais ou econômicos. Todos estes fatores interferem no modo como nos relacionamos com a pessoa humana, mas nenhum deles aniquila ou tira o seu valor e a sua dignidade. Portanto, toda pessoa humana, independentemente da sua origem, cor, raça, religião, sexo, idade, estado civil, profissão, condição econômica, situação moral, condição social ou existencial, é ser de valor e dignidade e nada e ninguém pode roubar ou aniquilar esta sua realidade constitutivo- estrutural.
Conclusão: temos que ter cuidado com certas afirmações aparentemente inocentes, mas grávidas de possibilidades antropológicas deturpadas e/ ou destrutivas.


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