sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Desconstruir para construir

Se alguém deseja plantar, primeiro deve limpar o terreno. Quem vai construir, primeiro precisa cavar e retirar bastante terra pra fazer a fundação.

Quando Deus chama Jeremias para a missão de profeta deixa claro: eu te envio para arrancar e derrubar, devastar e destruir, para construir e plantar (cf. Jr 1,10).

O papa Francisco tem feito isso de maneira magistral. Impressionante a sua capacidade de desconstruir onde precisa ser construído um novo jeito de ser papa, de ser Igreja, de ser cristão.

Desde o primeiro gesto profético e corajoso de pedir (a bênção e a oração do povo) antes de dar. Como Jesus, que começa o diálogo com a Samaritana pedindo: “dá-me de beber!” (Jo 4,7). Depois, a decisão de dispensar o trono, a mozeta (manto vermelho e dourado), o carro luxuoso, os sapatos vermelhos, a cruz de ouro, o aposento papal. Preferiu morar e tomar refeição com os irmãos, celebrar na capela da Casa Santa Marta, dando um forte testemunho de pobreza e simplicidade. Sua primeira viagem apostólica não foi a um país de ‘primeiro mundo’, um lugar de grande visibilidade, mas à ilha de Lampedusa, palco de dor e de morte, com o objetivo de despertar as consciências para a urgência de acolher o outro, combater a “globalização da indiferença” e “chorar os mortos que ninguém chora”. Fez dos destroços de um barco o altar da Eucaristia.

Na entrevista aos jornalistas, no avião, por ocasião de sua visita ao Brasil, surpreendeu a muitos com sua postura a respeito dos homossexuais: “quem sou eu para julgar?!”. Há poucos dias, recebeu em audiência privada o transexual espanhol Diego Neria Lejarraga e sua namorada.

E as entrevistas a bordo têm dado o que falar. Na última, de volta da visita às Filipinas, deixou escapar umas boas. “Para ser bom católico ninguém precisa procriar como coelho”. Se alguém ofende a mãe pode esperar um soco. E chegou a dizer que, numa situação em que dois políticos quiseram envolvê-lo num ato de corrupção, pensou se não deveria dar-lhes “um pontapé onde não bate o sol”, ou, em português claro, “um chute no traseiro”.

Parece absurdo um papa usar tal linguagem. Porém, com seu jeito bem popular de dizer as coisas, Francisco vai desconstruindo a aura de um semideus. É gente como a gente. E traz o recado certo de uma maneira que todos entendem. Desconstrói a imagem de autoridade que não tem nada a ver com Jesus Cristo. Como diz Moisés Sbardelotto, revela uma autoridade papal “não superiora e intocável, mas servidora e próxima”.

Numa linguagem acessível a todos, ele vai falando da paternidade responsável, da indignação diante dos corruptos e corruptores, do respeito à fé e à liberdade do outro. Alguns interpretaram que Francisco estava apoiando o atentado contra a revista francesa Charlie Hebdo, que matou 12 pessoas; que estaria incentivando a violência, o ‘olho por olho’. Sim, o evangelho manda mostrar a outra face. Mas Jesus, ao levar um tapa no rosto, não fez isso. Ou talvez tenha feito, mostrando o outro lado da moeda: “se falei mal, prove-o; e se falei certo, por que me bates?” (Jo 18,23). Francisco quis mostrar que a liberdade de expressão ou liberdade de imprensa tem um limite. Nada justifica a violência, mas o desrespeito é também uma forma de violência. “Você não pode gritar fogo num auditório cheio de gente e depois alegar liberdade de expressão” (Oliver Wendell, Juiz nos EUA).

Ainda nas Filipinas, Francisco surpreendeu com outros gestos. Em vez de retroceder ante a chuva torrencial e as rajadas de vento, ‘botou’ uma capa de chuva amarela, bem esquisita, mas a mesma que o povo estava usando, deu o seu recado emocionado e emocionante, celebrou sem se importar se aquela capa tiraria a estética dos paramentos. Face ao drama daquele povo devastado pelo tufão Haiyan, diante do questionamento da pequena Glyzelle, de 12 anos, perguntando por que Deus permite a prostituição de crianças da sua idade, o papa se cala e confessa: não tenho o que falar; não sei responder.

Como? Um Papa não sabe? Não tem resposta? Sim, não temos resposta pra tudo. Aliás, nós lidamos com o mistério, e mistério a gente não explica, simplesmente contempla e nele mergulha. Francisco poderia ter feito um discurso bonito, como é nosso costume, mas sua resposta foi de silêncio e lágrimas. Sua postura é outra. Não quer encher o povo de palavras e doutrinas. Quer apenas ser pastor. Talvez por isso o povo filipino o tenha apelidado de ‘vovô Kiko’.

Pe. José Antonio de Oliveira
zeantonioliveira@hotmail.com

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