Se alguém deseja plantar, primeiro deve
limpar o terreno. Quem vai construir, primeiro precisa cavar e retirar
bastante terra pra fazer a fundação.
Quando Deus chama Jeremias para a missão
de profeta deixa claro: eu te envio para arrancar e derrubar, devastar e
destruir, para construir e plantar (cf. Jr 1,10).
O papa Francisco tem feito isso de
maneira magistral. Impressionante a sua capacidade de desconstruir onde
precisa ser construído um novo jeito de ser papa, de ser Igreja, de ser
cristão.
Desde o primeiro gesto profético e
corajoso de pedir (a bênção e a oração do povo) antes de dar. Como
Jesus, que começa o diálogo com a Samaritana pedindo: “dá-me de beber!”
(Jo 4,7). Depois, a decisão de dispensar o trono, a mozeta (manto
vermelho e dourado), o carro luxuoso, os sapatos vermelhos, a cruz de
ouro, o aposento papal. Preferiu morar e tomar refeição com os irmãos,
celebrar na capela da Casa Santa Marta, dando um forte testemunho de
pobreza e simplicidade. Sua primeira viagem apostólica não foi a um país
de ‘primeiro mundo’, um lugar de grande visibilidade, mas à ilha de
Lampedusa, palco de dor e de morte, com o objetivo de despertar as
consciências para a urgência de acolher o outro, combater a
“globalização da indiferença” e “chorar os mortos que ninguém chora”.
Fez dos destroços de um barco o altar da Eucaristia.
Na entrevista aos jornalistas, no avião,
por ocasião de sua visita ao Brasil, surpreendeu a muitos com sua
postura a respeito dos homossexuais: “quem sou eu para julgar?!”. Há
poucos dias, recebeu em audiência privada o transexual espanhol Diego
Neria Lejarraga e sua namorada.
E as entrevistas a bordo têm dado o que
falar. Na última, de volta da visita às Filipinas, deixou escapar umas
boas. “Para ser bom católico ninguém precisa procriar como coelho”. Se
alguém ofende a mãe pode esperar um soco. E chegou a dizer que, numa
situação em que dois políticos quiseram envolvê-lo num ato de corrupção,
pensou se não deveria dar-lhes “um pontapé onde não bate o sol”, ou, em
português claro, “um chute no traseiro”.
Parece absurdo um papa usar tal
linguagem. Porém, com seu jeito bem popular de dizer as coisas,
Francisco vai desconstruindo a aura de um semideus. É gente como a
gente. E traz o recado certo de uma maneira que todos entendem.
Desconstrói a imagem de autoridade que não tem nada a ver com Jesus
Cristo. Como diz Moisés Sbardelotto, revela uma autoridade papal “não
superiora e intocável, mas servidora e próxima”.
Numa linguagem acessível a todos, ele
vai falando da paternidade responsável, da indignação diante dos
corruptos e corruptores, do respeito à fé e à liberdade do outro. Alguns
interpretaram que Francisco estava apoiando o atentado contra a revista
francesa Charlie Hebdo, que matou 12 pessoas; que estaria incentivando a
violência, o ‘olho por olho’. Sim, o evangelho manda mostrar a outra
face. Mas Jesus, ao levar um tapa no rosto, não fez isso. Ou talvez
tenha feito, mostrando o outro lado da moeda: “se falei mal, prove-o; e
se falei certo, por que me bates?” (Jo 18,23). Francisco quis mostrar
que a liberdade de expressão ou liberdade de imprensa tem um limite.
Nada justifica a violência, mas o desrespeito é também uma forma de
violência. “Você não pode gritar fogo num auditório cheio de gente e
depois alegar liberdade de expressão” (Oliver Wendell, Juiz nos EUA).
Ainda nas Filipinas, Francisco
surpreendeu com outros gestos. Em vez de retroceder ante a chuva
torrencial e as rajadas de vento, ‘botou’ uma capa de chuva amarela, bem
esquisita, mas a mesma que o povo estava usando, deu o seu recado
emocionado e emocionante, celebrou sem se importar se aquela capa
tiraria a estética dos paramentos. Face ao drama daquele povo devastado
pelo tufão Haiyan, diante do questionamento da pequena Glyzelle, de 12
anos, perguntando por que Deus permite a prostituição de crianças da sua
idade, o papa se cala e confessa: não tenho o que falar; não sei
responder.
Como? Um Papa não sabe? Não tem
resposta? Sim, não temos resposta pra tudo. Aliás, nós lidamos com o
mistério, e mistério a gente não explica, simplesmente contempla e nele
mergulha. Francisco poderia ter feito um discurso bonito, como é nosso
costume, mas sua resposta foi de silêncio e lágrimas. Sua postura é
outra. Não quer encher o povo de palavras e doutrinas. Quer apenas ser
pastor. Talvez por isso o povo filipino o tenha apelidado de ‘vovô
Kiko’.
Pe. José Antonio de Oliveira
zeantonioliveira@hotmail.com